Alicia Kuczman, 23 anos (Foto: Divulgação)
“Nasci em Cascavel, cidade de 300 mil habitantes no Paraná. Minhas lembranças do passado não se parecem nada com as típicas de quem cresce no interior. Apesar de adorar estudar, detestava ir ao colégio. Só tirava notas altas, mas não tinha amigos. Andava pelos corredores com um livro aberto cobrindo o rosto. Eu era diferente e sofria agressões por causa disso. O auge foi a comunidade dedicada a mim no Orkut. ‘O que você faria se a Alicia estivesse se afogando?’ era a pergunta de uma enquete. As opções eram ‘Cuspia nela’, ‘Chutava’, e por aí vai. A última alternativa era de longe a mais clicada: ‘Todas as anteriores’.
Chorava para não ir ao colégio, mas minha mãe trabalhava num hospital, como assistente social, e ficar em casa com meu pai, Osvaldo, 57, era outro pesadelo. Ele é um engenheiro inteligentíssimo, porém bipolar. Minha memória mais longínqua é de ele me batendo sem motivo. Tinha só 3 anos e sabia que não havia feito nada para merecer aquela surra. A cena se repetia a cada vez que ele mudava de humor com ataques físicos ou verbais. Ele me chamava de burra, dizia que eu não ia dar em nada, me mandava parar de importuná-lo com a minha ‘voz de taquara rachada’. Minha mãe, Herta, 54, passava a maior parte do dia fora e, na maioria das vezes, não presenciava nada. Quando meu irmão, Vinícius, três anos mais novo, e eu contávamos a ela o que havia acontecido, ela explicava que aquilo era reflexo da doença psicológica de meu pai. Mas, para mim, não era desculpa. Só eu sabia o que passava.
A forma que encontrei de me proteger foi criar meu próprio mundo. Minha diversão era costurar e bordar as roupas que inventava. Aos 11 anos, comprei uma pilha de revistas de moda num sebo e forrei as paredes do meu quarto com minhas preferidas. Sonhava um dia me ver estampada em uma página daquelas, embora não me achasse bonita o suficiente para estar ali. Mesmo com pouco mais de 50 quilos distribuídos em 1,77 metro de altura, cabelos louros levemente ondulados e olhos azuis.
Aos 12, me matriculei num curso de corte e costura para fazer peças mais elaboradas, como a calça de cintura alta que ainda não havia chegado à cidade. Cheguei a pensar que poderia ter uma marca. Assim, entraria no fascinante mundo da moda. De tanto falar no assunto, convenci minha mãe a me acompanhar em pequenos testes de modelo que apareciam em Cascavel. ‘Você é muito pequena’, diziam. ‘Ainda não está na idade.’ Eu insistia, insistia, e ela acabava me levando de novo e de novo ouvindo que ainda não estava pronta para ‘modelar’.
Em uma tarde de 2009, descobri que estavam convocando meninas em Cascavel para uma seleção. As escolhidas iriam a Florianópolis se apresentar para agências de São Paulo em busca de new faces. Minha mãe conseguiu uma brecha no trabalho e me acompanhou no teste. Fiquei eufórica quando o booker nos chamou de canto. ‘Essa menina tem tudo para acontecer’, disse a ela. ‘Precisa ir para Florianópolis.’ Pela primeira vez, achei que meu sonho poderia virar realidade. A coisa que mais queria na vida era sair daquela cidade. Mas ainda havia um problema: não tínhamos dinheiro para viajar. Apesar de nunca ter faltado nada em nossa casa, vivíamos com tudo muito contado. Mas o pessoal da agência queria tanto que eu participasse daquela seleção que conseguiu um desconto e nós fomos.
Aos 3 anos, meu pai me espancava sem motivo”
Embarquei com minha mãe para Santa Catarina num ônibus lotado de meninas altas, bonitas e cheias de sonhos. Ficamos hospedadas no mesmo hotel onde o teste aconteceu. No grande dia, conversei com cada um dos agentes, enfileirados atrás de uma mesa comprida. Eram muitos, algum haveria de me escolher. Levei um susto quando soube que quase todos queriam trabalhar comigo, a dificuldade agora era decidir por um só. Três meses depois, com 16 anos, estava trabalhando na extinta Lumière, morando em São Paulo num apartamento da agência com outras 11 garotas – nenhuma das que foram comigo para Florianópolis. Durante um ano e meio, participei de castings e mais castings, mas pouca coisa acontecia. Sem dinheiro, me alimentava de bolachas e croissant de pacote, até papel higiênico tive de pedir emprestado. Já estava com tudo pronto para pegar o caminho de Cascavel e abandonar a (tentativa de) carreira, quando fui fazer meu último trabalho, um lookbook de uma marca de roupas.
Durante o shooting, o maquiador e o fotógrafo me chamaram para conversar. ‘Você tem de mudar de agência’, disseram. Ligaram para a Way (a mesma de Carol Trentini e Alessandra Ambrósio) e me indicaram. Desde a semana em que pisei ali, nunca mais parei de trabalhar. Um mês depois, fui a recordista de desfiles do Fashion Rio e segui para as semanas de moda de Nova York, Milão e Paris. Minha vida agora era pelo mundo. Foi durante um ensaio de moda que conheci o diretor de cinema Marcos Mello, 35. No último dia de trabalho, ele, que estava capturando imagens em vídeo, me pediu para dançar em frente à câmera. ‘Tu acabas de ganhar um marido’, disse no fim. Saímos dois dias depois e, desde então, não desgrudamos mais. Isso já faz quatro anos e meio. A vida parecia muito melhor do que eu havia imaginado.
Alicia Kuczman (Foto: Reprodução/Instagram)Nas poucas vezes que voltava a Cascavel, duas por ano, olhava aqueles paredes cobertas por revistas e achava graça. ‘Trabalhei com aquela ali’, dizia para minha mãe. ‘Essa que está perto da porta ficou minha amiga’, mostrava outra. Ela vibrava com minha felicidade. Diferentemente do meu pai, que continuava me atacando nas crises e não se conformava de eu ter parado de estudar no fim do ensino fundamental.
Não tinha dinheiro. Me alimentava de bolachas”
Nos dois anos seguintes, fiz sucesso, ganhei dinheiro. Morava em um apartamento alugado em Nova York, vivia para lá e para cá. Trabalhava até 36 horas seguidas com a maior disposição. Fiz campanhas para Osklen e Alexandre Herchcovitch, posei para as principais revistas do mercado – Marie Claire entre elas. Era uma vida cansativa, mas eu não tinha do que reclamar. Em meados de 2013, me percebi inchada pela primeira vez. No corpo e principalmente no rosto. Mas não liguei. Como tomava um remédio regular para meu hipotireoidismo [inflamação da tireoide, glândula que, entre outras coisas, controla o metabolismo] desde os 11 anos, achei que era uma disfunção passageira. Mas um dia, aterrissando em Nova York, comecei a sentir dores absurdas do lado direito da barriga. Por sorte, Marcos estava comigo e me levou correndo para o hospital. Fizeram milhões de exames e não descobriram nada. Tomei uma, duas, cinco doses de morfina e continuava urrando, com o corpo contorcido e vomitando bílis sem parar. Horas depois, descobriram: estava com um cisto de 6 centímetros no ovário, que gerou um deslocamento do órgão – até hoje não confirmaram se a doença tem relação com a tireoide, mas acredito que sim. Os médicos disseram que precisavam operar às pressas e não podiam garantir que o ovário seria salvo.
A cirurgia foi um sucesso, mas minha barriga ficou inchada por duas semanas. Tinha vários contratos fechados no Brasil e todos foram cancelados. Ninguém podia esperar por mim. A dor passou, mas fiquei oito meses sem menstruar. Mesmo assim, não voltei logo ao médico. Displicência minha que teve graves consequências. Em abril de 2014, fui passar dois meses na Austrália a trabalho. Apesar de feliz, me sentia fisicamente esquisita. Vivia com fome, comia loucamente e emagrecia sem parar. Minha calma habitual foi substituída por acessos de irritação incontroláveis. Durante esse período, não fiz nenhum trabalho. Meu agente dizia que o mercado estava me achando magra demais. Havia acabado de acontecer um caso de anorexia na Semana de Moda de Sydney que ganhou repercussão na imprensa e, definitivamente, eu estava fora dos padrões. Na mesma época, comecei a adoecer por qualquer coisinha. Tomava um vento, tinha sinusite. Esfriava, ficava gripada. Ainda comia um quilo de castanhas por dia e raramente dormia mais de três horas por noite. Só apagava quando meu corpo não aguentava mais de exaustão.
De volta ao Brasil, tive um ataque de pânico no meio de uma sessão de fotos. Os termômetros cariocas marcavam 30 graus e eu tremia de frio no estúdio. Pedi uma pausa, mas a situação só piorava. Os músculos do meu corpo começaram a ter contrações involuntárias. A stylist conseguiu uma bacia de água quente e mandou que botasse os pés lá dentro. No mesmo minuto, meu corpo desarmou, como se derretesse. Era só o primeiro de outros tantos ataques de pânico que viriam em seguida. Nem sei de onde tirei forças, mas consegui terminar o trabalho. O cliente era antigo e pareceu compreender a situação. Mas nunca mais me chamou para nada.
Finalmente marquei um médico, que pediu exames de sangue. O resultado foi alarmante: meu TSH [hormônio que estimula a tireoide] estava tão baixo que era indetectável. Estava com hipertireoidismo, disfunção na tireoide oposta à que tinha antes que, em vez de desacelerar o metabolismo, deixa-o extremamente acelerado. Os sintomas já sabia de cor: perda de peso, sudorese, depressão, pele ressecada, unhas e cabelos fracos, que caíam em tufos cada vez que me penteava. Desesperada, passei por oito endocrinologistas em um intervalo de um ano e meio. Os primeiros me mandaram tomar Rivotril ‘para não incomodar ninguém’. Outros, dependendo do dia em que ia visitá-los, receitavam remédios para perder ou aumentar o apetite. Em uma semana, chorava sem parar e não conseguia pregar o olho. Na seguinte, ficava absolutamente apática. Nesse período, meu peso chegou a ter variações de 7 quilos em sete dias. ‘Alicia embuchou’, diziam pelas costas. ‘Cresceu e ficou gorda.’ Ninguém me chamava mais para nada.
Meu corpo parecia derreter. Era um ataque de pânico”
Sozinha, observei meu corpo e descobri que o inchaço ficava controlado se alternasse a dose do remédio. Até que finalmente encontrei uma médica que me ouviu com paciência e decidiu aprofundar o tratamento. Foram oito meses em que continuei engordando e emagrecendo rapidamente – sem contar outros efeitos horríveis, como taquicardia (não podia andar depressa nem fazer sexo) –, mas a doutora Carolina Mergulhão finalmente conseguiu ajustar a dosagem do medicamento. Numa ida a Cascavel, tive uma crise de ansiedade e corri para a sala em busca de ajuda. Meu pai estava lá sozinho e não tive outro jeito a não ser pedir socorro a ele. ‘Acho que vou morrer’, disse. ‘Posso deitar no seu colo?’ Ele fez um sinal positivo com a cabeça e me aconcheguei em suas pernas. Ninguém disse nada. Não precisava. Dias depois, ele falou pela primeira vez que me amava. Aos poucos, voltei a dormir, trabalhar, viver. Hoje, reconheço
minha força e o poder de transformação que carrego em mim. E quando me dizem: ‘Como você está magra, ‘Como está linda’, respondo prontamente: ‘Regulei a tireoide’. Simples assim.”
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